IEB5044 – O Antropoceno – Abordagens Transdisciplinares

Prof. Dr. Stelio Alessandro Marras

Colaboração: Dra. Karen Shiratori

Início em: 10/09/2021

6º feira | 15h00 às 19h00

A disciplina será ministrada de forma remota.

 

Professores convidados: Eduardo Neves (MAE/USP), Joana Cabral de Oliveira (Departamento de Antropologia/Unicamp), Pedro Paulo Pimenta (Departamento de Filosofia/USP), Renato Sztutman (Departamento de Antropologia/USP), Renzo Taddei (Instituto do Mar & Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/Unifesp), Rita Natálio (Instituto de História de Arte/NOVA Lisboa)

 

Trabalho final:

Formular, com base nas discussões e leituras do curso, propostas de intervenção ou resposta às forçantes do Antropoceno. Diante das problemáticas, quais as possíveis solucionáticas?

 

Critérios de avaliação:

Trabalho final

 

Ementa

A partir das ciências humanas e da filosofia, embora sem nelas se bastar, o curso pretende aproximar-se do tema do Antropoceno (proposição de uma nova época geológica marcada pelos impactos em escala e velocidade de certas ações antrópicas na auto-regulação do planeta). Encarar a fusão entre modalidades de saber tradicionalmente separadas em “ciências do espírito” e “ciências da matéria” parece ser passagem obrigatória para abordagens as mais realistas do tema. Como acontecimento e objeto de estudo, o Antropoceno põe em causa, de modo inédito, as abordagens estritamente disciplinares. Considerá-lo exige afrontar qualquer exclusivismo pretendido por áreas ou domínios do conhecimento. Consequentemente, tal programa de investigação deve desconfiar, logo de partida, da autonomia ou suposta suficiência dos dois grandes repertórios epistemológicos e críticos da modernidade, ambos derivados das “duas culturas” (C. P. Snow), e que hoje podemos identificar como, de um lado, o “humanismo multicultural”, e, de outro, o “mononaturalismo”. Nesse sentido, é como se, por exemplo, não fizesse mais sentido separar a agenda dos Direitos Humanos da agenda dos Direitos Ambientais. Um tal emaranhado, devidamente explorado, tem impactos significativos nas bases epistemológicas da modernidade (conforme definição de Bruno Latour). Em seu lugar, outras visadas pedem passagem. Contra as infecundas Guerras das Ciências (Science Wars), ganham força as reviravoltas ontológicas (Ontological Turn) e outras viradas que permanecem ainda sem um nome.

Dentre os chamados inelutáveis do Antropoceno, destaque-se, em outras palavras, a urgência por conexões – ou sobretudo outras conexões – entre áreas ou domínios tradicionalmente divisados pela modernidade. Que pode agora, por exemplo, a economia sem a ecologia? Daí a pertinência, a cada vez crescente, de frentes forçosamente transdisciplinares, como a Bioeconomia e a Economia Ecológica. Entram em cena, nos termos de Isabelle Stengers, os contraintes (constrangimentos) de Gaia, essa figuração do planeta agora restaurada, sob mil nomes, no século XXI. Tais constrangimentos, terríveis ou promissores, fazem emergir narrativas etnograficamente orientadas que reavivam as descrições, como a que se convencionou designar por estudos multiespécies. O curso deve se aproximar da usina dessas novas imaginações teóricas que encaram o Antropoceno como uma espécie de forçante do pensamento contemporâneo. Torna-se assim inevitável, por exemplo, refletir sobre a assunção de novas figurações do “Anthropos” e suas ciências quando agora, no Antropoceno, humano e não-humano já não se deixam mais tomar como simplesmente descontínuos entre si, em seus supostos contornos auto-evidentes. Tal corresponde a perguntar: qual ciência do propriamente humano no Antropoceno? Qual a do propriamente não-humano? Abre-se assim uma passagem, ainda que exígua, na qual se vislumbra o horizonte do além do homem? O evidente se desconcerta diante de novas e profusas evidências. Mas são estas o signo de qual ordem? Como forjar um discurso capaz de articulá-las e sem moldá-las a expectativas prévias e restritivas?

Viradas, reviravoltas, torções nos hábitos de pensamento – eis aí as chances que os modernos passam a reunir para que, finalmente (ou diante da escatologia contemporânea de “fim do mundo”), possam se tomar como jamais tendo sido modernos. De fato, algum dia a teoria da evolução e a geologia ofereceram as reconfortantes perspectivas que se esperavam delas? Não é chegado o tempo de explorar as sendas desses discursos, prospectando neles não bem uma ideia de natureza, mas potencialidades inauditas acerca do vivente? Que política do conceito se extrairia daí? Certamente, para falamos com Rancière, uma nova e inesperada “partilha do sensível”.

Quando o cosmos e a política se mostram tão embaraçados e inextricáveis entre si, novas diplomacias se insinuam como possíveis. É trabalho de desestabilização do pensamento e da prática rumo a novas estabilizações provisórias, hauridas em vivas controvérsias sociotécnicas e disputas por narrativas, mas não por isso menos objetivas. Bem ao contrário, estamos face à eleição de uma neo-objetividade, um neo-realismo emergindo da abertura das ciências umas em relação às outras – e mesmo em relação ao que, por contraste, se designará por “não-científico”.

De sua parte, a arqueologia, a geologia e a biologia combinam métodos de prospecção e sondagem que almejam alcançar consenso ou estabilidade na comunidade acadêmica com relação ao conjunto de marcadores ou assinaturas geoquímicas de tecnofósseis que tornem mais precisa e suficiente a datação da nova época geológica do Antropoceno. É o que neste momento se passa com os trabalhos da Comissão Internacional de Estratigrafia, organismo da União Internacional de Ciências Geológicas. Quanto à política, sua agência se redistribui e ganha figurações não-humanas diante da já explícita invasão do cosmos em seu seio. A natureza passa a inspirar a política de um modo nunca antes concebido pelo ocidente moderno. As ciências e a política são agora convocadas a se colocar em presença daquilo que geram ou mobilizam no mundo. São chamadas a responder com responsabilidade (“response-abilities”, para mencionar o neologismo de que Donna Haraway se vale) pelos imbróglios a um só tempo humanos e não-humanos que se pode flagrar nos cursos da ação. Doravante, os modernos estarão diante do imperativo de se desenvolver uma atenção às consequências de suas ações no mundo. Eis o que Stengers (2013) nomeia como “arte das consequências” – desafio certamente incontornável nas passagens diplomáticas do “povo da mercadoria” (Davi Kopenawa) para o “povo de Gaia” (Latour). Pergunta retórica: serão estas passagens uma opção?

 

Bibliografia

Bispo dos Santos, Antonio. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: Ed. Ayó, 2019.

Canguilhem, Georges “O ser vivo e seu meio”, in: O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

Carneiro da Cunha, Manuela. “Antidomestication in the Amazon: Swidden and its foes”. HAU: Journal of Ethnographic Theory 9 (1): 126–136; 2019.

Catálogo da conferência-dançada «Antropocenas » (2017), de João dos Santos Martins e Rita Natálio

Chakrabarty, Dipesh. “The Climate of History: Four Theses”. Critical inquiry 35.2: 197-222; 2009.

Clastres, Pierre. A sociedade contra o Estado: pesquisas de antropologia política. São Paulo: Ed. Ubu, 2017.

Crutzen, P. J. “Geology of Mankind”. Nature 415, 2002.

Crutzen, P. J. and E. F. Stoermer. “The Anthropocene”. Global Change Newsletter 41, 17-18, 2000.

Cuvier, G. Memória sobre as espécies de elefantes fósseis. In: Evaldo Becker. (Org.). Técnica, Natureza e Ética Socioambiental. 1ed. Aracaju: República do Livro/Discurso Editorial, 2019, v. 1, p. 189-218.

Danowski, Déborah & Viveiros de Castro, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014. (p. 85-160)

Danowski, Déborah. Negacionismos. São Paulo: N-1, 2019.

Darwin, C. A origem das espécies. São Paulo: Ubu, 2018.

Davis, H.; Turpin, E. (org) (2015). Art in the Anthropocene – Encounters among aesthetics, Politics, Environments and Epistemologies, Open Humanities Press.

Delaporte, François  A doença de Chagas. História de uma calamidade continental. Ribeirão Preto: Holos, 2003. (cap. 1)

Demos, T. J. (2016) Decolonizing Nature – Contemporary Art and the Politics of Ecology, Berlim: Sternberg     Press.

Glowczewski, Barbara & et Laurens, Christophe. “Le conflit des existences à l’épreuve du climat, ou l’Anthropocène revu par ceux que l’on préfère mettre à la rue ou au musée”. In: Beau, R. & Larrère, C. (eds.) Penser l’Anthropocène. Paris: Science Po Les Presses, 2018.

Hache, Émilie. “Tremblez, tremblez, les sorcières sont de retour! Écrivaines, philosophes, activistes et sorcières écoféministes face au dérèglement climatique”. In: Beau, R. & Larrère, C. (eds.) Penser l’Anthropocène. Paris: Science Po Les Presses, 2018.

Hage, Ghassam. Is Racism an environmental threat? Cambridge: Polity Press, 2017.

Haraway, Donna. Staying With the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016

Ingold, Tim. « Par delà biologie et culture. Le sens de l’évolution dans un monde relationel », in : Marcher avec les dragons, Paris : Zones Sensibles, 2013.

Jacob, François. A lógica da vida. Uma história da hereditariedade, Rio de Janeiro:  Graal, 1983. (cap. 3).

Kilomba, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. Cobogó, 2019.

Kolbert, Elizabet. A sexta extinção. Uma história não-natural. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2015.

Kopenawa, Davi & Albert, Bruce. A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015

Krenak, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. (+ Posfácio de Viveiros de Castro à edição francesa).

Larsen, Clark et al. “Bioarchaeology of Neolithic Çatalhöyük reveals fundamental transitions in health, mobility, and lifestyle in early farmers”. Proceedings of the National Academy of Sciences 116 (26) 12615-12623; 2019.

Latour, Bruno. Face à Gaïa. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris, La Découverte, 2015. (Introdução, Primeira, Quarta e Sexta conferências). [tradução em português: Ed. Ubu, 2020]

Latour, Bruno. Où atterrir — comment s’orienter en politique. Paris, La Découverte, 2017. [tradução em português: Ed. Bazar do Tempo, 2020]

Malthus, T. An essay on population, Londres: 1798. (Cap. 1)

Marenko, Betti. Algorithm Magic: Simondon and Techno-animism. In: Natale, Simone & Pasulka, Diana (eds.). Believing in Bits: Digital Media and the Supernatural. Oxford University Press, 2019.

Mbembe, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: N-1, 2018.

Mirzoeff, N. (2014). “Visualising the Anthropocene”. Public Culture 26:2: Duke University Press.

Povinelli, Elizabeth. Geontologies: a requiem to late liberalism. Durham: Duke Press, 2016. (Caps. 1, 2, 3 e 7)

Rancière, Jacques  O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2008. (Cap. 2)

Scott, James. The art of not being ruled: an anarchist history of upland southeast Asia. New Haven: Yale University Press, 2009.

Scott. James C. Against the Grain: A Deep History of the Earliest States, Yale University Press, 2017

Stengers, Isabelle. “Penser à partir du ravage écologique”. In:  Hache, É. (ed.) De l’univers clos au monde infini. Paris, Éditions Déhors, 2014.

Stengers, Isabelle. “The challenge of ontological politics”. In: De la Cadena, M. & Blaser, M. (eds.) A world of many worlds. Durham: Duke University Press, 2018.

Stengers, Isabelle. Résister au désastre: dialogue avec Marin Schaffner. Paris: Wildproject. (+ Posfácio de Émilie Hache).

Tsing, Anna. “Margens indomáveis”. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 12, página 02 – 11, 2018.

Tsing, Anna. The Mushroom at the End of the World: On the Possibility of Life in Capitalist Ruins. Princeton, Princeton University Press, 2015

Van Dooren, T; Kirksey, E.; Münster, U. “Estudos multiespécies: cultivando artes de atentividade”. Incerteza, ano 3, n.7

Zalasiewicz, Jan, et al. “The Working Group on the Anthropocene: Summary of evidence and interim recommendations”. Anthropocene 19: 55-60, 2017.